3 de fevereiro de 2007

a relíquia





"Sobre a nudez forte da verdade - o manto diaphano da phantasia"
(coisa gira esta de escrever o "f" com ph)

A Relíquia é o nome de um dos mais belos romances de Eça de Queiroz e certamente aquele que mais gostei de ler de entre toda a sua obra, que li há muito (alguns os livros mais de uma vez).

Muito apropriada a história para os tempos que correm.

Hoje por acaso enquanto praticava um dos meus mais frequentes passatempos - o zapping - parei na 2 e assisti ao tempo de antena dedicado à campanha eleitoral para o referendo sobre o aborto.

Não há duvida que o Prof. Martelo é um aprendiz de feiticeiro ao lado do velho Eça.

Apesar de eu achar que o Eça era um critico feroz da sociedade portuguesa, é nestes momentos que o nacionalismo dele nos fazia falta

A direita em volta da defesa da vida é contra o aborto mas a favor da descriminalização da mulher; a esquerda é a favor da mulher e contra a criminalização do aborto. Ou vice versa, ou então de trás para frente e de cima para baixo.
A hipócrisia é muita e os interesses instalados são tantos que não me admiraria se daqui a uns anos o senhor procurador geral da republica vier a instaurar um processo para averiguar o envolvimento de algumas figuras anónimas e outras mais ou menos graúdas num qualquer negócio de favorecimento a propósito.

Mas não só por aqui, porque a nossa vida no dia a dia também está cheia de fazedores e vendedores de relíquias e de tias ferverosas e de gentes e gentinhas e de gentões que preenchem o espaço onde nos movemos e nos envolvem porque o deixamos.

A Relíquia é uma sátira humorística à hipocrisia - representada por Teodorico, o exemplo da nova geração - e ao fanatismo religioso - representada por Dona Patrocínio, a velha tia.

O auge da representação da hipocrisia faz-se no episódio final, quando em vez da coroa de espinhos, surge uma camisa de noite, perante um ambiente fervorosamente religioso.

É um livro que se lê bem numa noite de insónia, mas para abreviar caminho deixo aqui um resumo da história:

A acção centra-se em torno de Teodorico Raposo – o protagonista e narrador.

Teodorico vivia com uma velha tia, rica e muito devota. Por influência de um amigo, Dr. Margaride, decide aproximar-se da tia e traçar uma estratégia para herdar a avultada fortuna da velha senhora. Para tal, mostra-se (falsamente) religioso e devoto.
Pede à tia que lhe financie uma viagem a Paris, mas esta recusa-se terminantemente afirmando que Paris era a cidade do vício e da perdição. Teodorico pede, então, para fazer uma peregrinação à Terra Santa. A tia consente e pede que lhe traga uma recordação.
O sobrinho leviano parte e, na viagem, envolve-se com uma inglesa – Mary – que, como recordação dos momentos que passaram juntos, lhe dá um embrulho com a sua camisa de noite.
Chegado à Palestina, Raposo continua a sua vida profana e amoral.
Mas, aí, tem um sonho no qual se imagina a assistir a todo o processo de Jesus. Esta é a forma que Eça encontra para negar a verdade da ressurreição.
Antes de regressar, Teodorico lembra-se do pedido da tia e corta uns ramos de um arbusto e tece com estes uma coroa, que embrulhou e pôs na sua bagagem.
Entretanto, uma pobre mendiga pede-lhe esmola e ele deu-lhe o embrulho que (pensava ele) continha a camisa de Mary.
Chegado a Lisboa, relata, hipocritamente, à tia todas as penitências e jejuns que fizera durante a peregrinação e oferece-lhe o embrulho, dizendo que este continha a coroa de espinhos.
A abertura da suposta relíquia faz-se perante uma imensa audiência de sacerdotes e beatas, num ambiente de ansiedade. Qual o espanto de todos quando, em vez do sagrado objecto, surge a camisa de noite da inglesinha.
Este insólito episódio vale a Teodorico a expulsão de casa da tia e a perda da fortuna que ambicionava.
Para sobreviver, Raposo passa, então, a vender relíquias da Terra Santa, que fabrica em grandes quantidades, acabando por arruinar o negócio.
Acaba por compreender a inutilidade da falsidade e da mentira quando tem uma visão de Cristo.
Arranja um emprego, graças a um amigo do colégio e casa com a irmã deste. Parecia regenerado da hipocrisia que o caracterizava, mas ao saber que o padre Negrão – um dos clérigos que costumava frequentar a casa de Dona Patrocínio – herdara desta a Quinta onde ele nascera e que este era amante de Amélia, uma mulher com quem se relacionara em tempos e que o havia traído, Teodorico apercebe-se que tinha perdido a choruda fortuna por não ter sido ainda mais hipócrita e cínico. Se naquele dia tivesse tido a coragem de declarar que aquela camisa pertencia a Santa Maria Madalena, teria ficado bem visto entre os presentes e herdado a fortuna.



Sem comentários: